Orelha do livro



          Seis “pessoas iluminadas” interpelam um narrador, que é compelido à escuta de suas falas. Seis nomes tais como constam na certidão de nascimento e no RG, mas também seis histórias de vida em que não raro nomes são esquecidos, trocados, roubados ou renegados. Em Guarulhos, no Imirim, em Perus, Várzea Paulista, Vila Zilda cidadãos fazem a vida nas margens, em arranjos sempre e inapelavelmente precários: Idé é garçonete, Patrícia, copeira, Filipe já foi funcionário de banca de jornal, office boy, atendente de telemarketing. Trata-se, na verdade, de um cortejo de resistentes, dos quais o narrador empresta o luxo do transe – Paris em Perus – ou o combustível da dor que lhe acende as visões.
            O mote do texto, as histórias de vida, pressupõe a pergunta pelas origens, em cujo reverso a pessoa se dissolve nos nomes que se multiplicam. Afinal, se mãe e pai são apenas dois, os avós são quatro, os bisavós, oito, e assim por diante, ou melhor, para trás. Alçando voo a partir da escuta simpática de memórias alheias, que por sua vez se alienam a outra voz, Memórias de Baruc capta um sentido da precariedade de dizer “Eu” indissociável daquele da precariedade das condições de vida. Talvez não caiba falar de um percurso do documento para a ficção, transposto pelo narrador, já que, dizendo-se, cedendo as suas histórias, os personagens por conta própria “tornam-se outros, ou seja, eles mesmos sem a pressão de seus nomes”. Percurso arriscado, esse. Tornar-se outro pode ser posse ou alienação. E se é assim, por que não dizer que Benedito Vítor, o belo Vitão, é um singular exemplo de pessoa bem-sucedida (é desnecessário advertir o leitor da ironia que acompanha essa expressão. Essas histórias vão onde está o avesso do sucesso e das carreiras.)?
            O narrador que aos poucos vem à superfície do texto, andarilho que faz do tempo espaço para caminhadas, deseja um não tempo, mas tempo há. Baruc, refazendo os registros perdidos das falas de Jeremias, o profeta, faz do futuro anunciado artigo de memória, passado. As genealogias, um traço do estilo bíblico, aludem a outras origens, as do país. Profeta é também Antonio Conselheiro, paradoxalmente personagem de um passado que custa a passar. O arraial de Canudos, o cangaço, o jaguncismo, o mandonismo vão deixando ver, quem sabe, o fantasma de uma alegorização. A periferia paulistana se projeta sobre “os sertões de dentro a conquistar”, ainda que a enfiada de histórias se descomprometa da visita complacente a qualquer coração do Brasil. Na contraface das biografias, o prazer de narrar e disseminar vozes e falas gostaria de cortar as amarras das circunstâncias, mas, postas, elas reverberam.
            A imagem de Gal Costa na TV conta de uma infância vivida nos anos 70, um tempo-chave dessas Memórias. Nesse tempo, o luxo do transe vira a miséria do nome extorquido nas sessões de tortura. Mas o narrador, percorrendo a escala dos nomes e dos seres – Gal, gel, Gil, gol, gul –, pressente no núcleo de memória, Gal, o mote para o futuro, gul, palavra ainda carente de coisa.